Morfologia da igreja barroca no Brasil – I

Silvio Colin
 

MORFOLOGIA ESPACIAL

A BASÍLICA

Muito se diz que a Igreja Católica deve sua rápida expansão à infra estrutura que herdou do Império Romano. Isto é verdadeiro também quando se fala da forma das igrejas. Uma das formas de edifício principais utilizadas na Idade Média para o culto cristão era a basílica, um edifício que, em sua origem nada tinha a ver com o culto.  Tratava-se de um edifício de múltiplos usos, de caráter representativo, servindo como mercado, edifício bancário e bolsa, sala de justiça e simples ponto de encontro[1].

 

Caracteriza-se a forma tipológica da basílica por um partido longitudinal, três naves, sendo a central mais alta, recebendo iluminação natural de ambos os lados e por cima das naves laterais, tendo em ambas as suas extremidades absides,  funcionando como tribunas. A separar a nave central das laterais temos um colunada. Todos este elementos serão parte da igreja cristã de forma basilical, embora outros lhe serão acrescentados.

Uma das questões mais importantes será a orientação. O culto católico necessita de um espaço orientado, onde o altar ocupa o lugar principal. Na basílica pagã havia um eixo de dupla orientação. Além isso a entrada da basílica pagã se dava lateralmente, enquanto que na cristã, será na extremidade oposta ao altar. Grande inovações católicas foram as plantas centradas, octogonais como São Vidal de Ravena, em cruz grega, como São Marcos de Veneza .

Porém a que mais vai repercutir na futura forma barroca será o acréscimo de um transepto, um eixo perpendicular à nave, que vai acontecer ainda na Idade Média. Mais do que uma justificativa funcional, tem uma intenção simbólica de representar em planta a cruz latina, símbolo máximo do cristianismo. A basílica de São João de Laterano (313-19 d. C.) [2] , construída no tempo de Constantino, é considerada a primeira sala de reuniões cristã, e nela estão configurados os principais elementos deste tipo arquitetônico – a nave central(1),  o transepto (2), as naves laterais (3),  o nártex (4),  o altar (5), a abside (6) onde ficava o presbitério[3].

 

Esta forma da basílica cristã vai encontrar maturidade no final da Idade Média com as catedrais góticas, das quais a Catedral de Chartres (1140) é um dos exemplos mais emblemáticos. Concorrem para este momento também o processo construtivo organizado em torno das guildas (corporações de artífices) que elevaram ao ponto máximo a tecnologia da construção em pedra, utilizando o sistema de arco. Permanecem o nártex(1),  (2), as naves laterais (3) e o transepto (4). As modificações introduzidas então são uma maior valorização da área atrás do altar, onde se posiciona o coro (6).

Parte indispensável na catedral gótica é  o  deambulatório (7) e suas capelas (8). As modificações não ficam restritas à planta. A catedral gótica muito deve ao sistema construtivo das abóbadas de arestas, já utilizadas havia muitos séculos, mas que foram exploradas até o limite. O arco botante, onde se descarregam as cargas horizontais das abóbadas, são outra elemento fundamental. As torres ganham importância, manifestando, mais do que qualquer outra construção as aspirações de domínio, ambição técnica e desejo de vencer a gravidade. Questões que neste momento já faziam parte do ideário católico

IGREJA BARROCA

Para entendermos a forma da igreja barroca, é necessário, em primeiro lugar entendermos a igreja e  a sociedade do século XVI, na Europa. A  igreja católica enfrentava grandes problemas devido aos movimentos cismáticos da Reforma protestante. A reação contrária viria com a Contra Reforma, cujo principal motor seria o Concílio de Trento, convocado pelo papa Paulo III, em 1545, e cujas 25 sessões se estenderiam até 1563, com o papa Paulo IV. Este concílio não se limitaria às estruturas religiosas mas se dirigiriam também a determinações concernentes às artes e à arquitetura. A igreja então perderia as naves laterais, para que o culto se concentrasse na nave central, o que se daria maior unidade  e efetividade.

Falar em Contra Reforma é falar na Ordem Jesuítica[4], que nos deu o edifício mais significativo da época, e que marca a transição morfológica da Igreja Católica: a Igreja de Gesu, em Roma,  de Giacomo Vignola, concluída em 1568. Nela estão alguns dos mais importantes elementos, como as capelas laterais substituindo as naves e o transepto embutido no corpo da construção.

Algumas variações seriam freqüentes. As capelas poderiam ser mais ou menos profundas, intercomunicáveis ou não, assim como os altares laterais, que variavam muito quanto à forma. A cúpula, no cruzamento das naves, será muito rara no Brasil, no período colonial, provavelmente devido a dificuldades técnicas, entretanto o protótipo seguirá ainda uma grande evolução até chegar à sua forma mais completa.

O PERÍODO MISSIONÁRIO E O PERÍODO MONUMENTAL [4]

A influência de nossa arquitetura nos vem mais diretamente de Portugal, especificamente de três templos jesuíticos: a igreja de São Roque, em Lisboa, de 1565-73, o Colégio Jesuítico de Évora, de 1567-74 e o Colégio de Braga, de 1567-88. Todos adotando a nave única, porém com substanciais diferenças.

Em São Roque temos o nartex que não estava presente à Igreja de Gesu, as mesmas capelas intercomunicáveis, entradas laterais, porém não temos a abside e o altar-mor é mais inibido, assim como os altares laterais e o transepto embutido. Note-se os pequenos corredores laterais a este elemento espacial e as entradas laterais..  Na igreja de Évora temos um nártex externo em forma de pórtico com maior importância como a maior diferença sobre a anterior.

No Brasil,  ainda no século XVI, os jesuítas construíram os colégios de Salvador, iniciado por Mem de Sá em 1561, de Olinda, em 1584, o do Rio de Janeiro, iniciado em 1585 e o de Santos, reconstruído em 1598. O colégio de Olinda foi construído por  Frei Francisco Dias, irmão da ordem. Os historiadores vem neste templo muita semelhança com a igreja de São Roque, embora a planta revele esta semelhança apenas nos altares. As capelas laterais foram reduzidas a apenas duas, em dois nichos laterais. A igreja tem apenas uma nave, sem transepto. O arco triunfal e a cornija foram certamente inspirados na igreja de Lisboa.

 

As atividades construtivas dos jesuítas, bem como de outras ordens tiveram uma substancial diminuição nas primeiras décadas do século XVII, em grande parte devido aos transtornos causados pela invasão holandesa. Na segunda metade do século, porém as atividades são retomadas. É o chamado período monumental, onde são empreendidos trabalhos em Salvador, Vitória, Recife, São Paulo, Belém, São Luís, Santos e Mariana, entre outros. Destas, as mais importantes são a igreja do Colégio de Salvador e a igreja de Belém do Pará, semelhantes entre si, porém com algumas diferenças em diferença sobretudo nas plantas. Em Salvador, temos a presença do nártex  e da sacristia atrás do altar e o corredor lateral      a este, o transepto embutido no perímetro regular. Em Belém, temos a sacristia lateral ao altar, sem corredor e o transepto ligeiramente ressaltado.

Em corte, embora haja muitas semelhanças, ressaltamos que na igreja de Salvador, a presença de dois arcos menores ladeando o arco do cruzeiro, o que ressalta a maior monumentalidade. Na igreja do Mosteiro de São Bento, no Rio de Janeiro, fica bem marcado o tema da nave principal. O nártex fica contido entre as duas torres e os ambientes serventes da igreja em si confundem-se com o restante da construção, não tendo havido a preocupação de fechar o edifício em uma unidade retangular. Em São Bento de Salvador, mais grandioso e moderno que o do Rio,  nártex tem maior presença, as capelas laterais tem clara inspiração na matriz de Gesu, o cruzeiro é bem delineado na planta, com uma cúpula no centro.

 A igreja de nave única apresenta alguns inconvenientes com relação à circulação, da sacristia para o coro ou para as torres, do altar para o para o púlpito. Assim é que pouco a pouco foi surgindo a necessidade de um corredor lateral que irá aparecer, talvez pela primeira vez, segundo Germain Bazin, na igreja do Oratório, em Paris, em 1621[5].

NOTAS

[1] MÜLLER, Werner e VOGEL, Gunther. Atlas de arquitetura. Madrid: Alianza, 1989. Vol 1, P. 231.

[2] A igreja original de São João de Laterano  (San Giovanni in Laterano; em Portugal, São João Latrão) localiza-se em Roma, na praça do mesmo nome, cujo local era domínio da família Laterano. È considerada a mãe de todas as igrejas, uma das quatro basílicas patriarcais. Foi construída por Constantino em 314-8, primeiro imperador romano cristão. Foi reconstruída em 904-11, depois de um terremoto. Sua forma atual vem de 1655 e deve-se a Borromini. Em 1736, Alessandro Galilei acrescentou-lhe a fachada monumental. A fachada norte é de Demenico Fontana.

[3] Local dos presbíteros. O grau de presbítero é um estágio intermediário na hierarquia do clero católico, sendo posterior ao diácono e anterior ao bispo.

[4] Os jesuítas eram membros da Companhia de Jesus, instituição de clérigos fundada por Santo Inácio de Loyola em Roma, 1539. Era uma sociedade missionária, dedicada principalmente à catequese e o ensino, indispensáveis portanto aos novos tempos do catolicismo. Os Soldados de Cristo possuiam organização semelhante aos militares, eram combativos e faziam, como ordem secular, contraponto às ordens monásticas e mendicantes. No Brasil teve atuação importante na catequese, defesa dos índios e no ensino religioso, deixando também edifícios  religiosos importantes como os Colégio de Salvador e Rio de Janeiro, entre outros. Foram expulsos do Brasil e de Portugal em 1759, pelo Marques de Pombal, por questões políticas.

[4] Robert Smith divide a arquitetura barroca no Brasil em Período Missionário, correspondendo às construções do século XVI, Período Monumental, no século XVII, e Período Mundano, correspondendo ao Período de Mineração, no século XVIII.

[5] BAZIN, Germain. A arquitetura Religiosa Barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1983.  Vol 1, p. 128.

BIBLIOGRAFIA

ALVIM, Sandra. Arquitetura Religiosa Colonial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UFRJ; IPHAN, Prefitura da Cidade do Rio de Janeiro. 1999.

BAZIN, Germain. A arquitetura Religiosa Barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1983. 2 vols.

COPPLESTONE, Trewin (Ed.) . World Architecture. An Illustrated History. Londres: Hamlyn. 1963.

SANTOS, Paulo F. O Barroco e o Jesuítico na Arquitetura do Brasil. Rio de Janeiro: Kosmos, 1949.

SANTOS, Paulo F. Subsídios para o estudo da Arquitetura religiosa em Ouro Preto. Rio de Janeiro: Kosmos, 1951.

2 Respostas para “Morfologia da igreja barroca no Brasil – I

  1. Muito pedagógico o texto!

  2. veronica alves

    Parabéns, voce contribui para que tenhamos um Brasil com melhores profissionais, sua página, é um achado para alunos de arquitetura.

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