Para entender o Desconstrutivismo

Silvio Colin

Trecho de ensaio publicado na revista AU, nº. 181. Abril de 2009. P. 84-9.  Você pode ler o ensaio completo em http://www.revistaau.com.br/arquitetura-urbanismo/181/imprime131095.aspMuseum Guggenheim Bilbao. Imagem http://www.nbnnews.com

O pensamento do arquiteto tem sido formado por algumas estruturas das quais não se liberta a não ser mediante um grande esforço de “leitura atenta”, de trabalho desconstrutivo. E este trabalho se insere no mesmo projeto de desconstrução das tradições da cultura ocidental e partilha os mesmos interesses. O alvo primeiro da Desconstrução é o chamado logocentrismo, i. e. o privilégio dado à lógica e à razão, sobre outras formas de apreensão da realidade e busca da verdade. Interessa-nos no momento esclarecer este  tipo particular de logocentrismo, próprio da arquitetura:  conceitos estruturantes particulares do trabalho dos arquitetos, que cumprem a mesma função dos conceitos estruturantes do pensamento ocidental na literatura e filosofia e que são objetos da desconstrução dos escritores e filósofos pós estruturalistas, não mais nos textos, mas na elaboração de projetos (forma de “escritura” própria do arquiteto).

A abordagem estruturalista (no sentido da tradição saussureana) tem sido levada a efeito na arquitetura a partir dos anos 1960, por arquitetos e críticos como Venturi e Jencks [1], buscando construir a malha estrutural resultante do rebatimento dos conceitos lingüísticos para a produção e a crítica arquitetônica. Mais recentemente, a colaboração de Jacques Derrida com Peter Eisenman e Bernard Tschumi, iniciada por ocasião do concurso para o projeto do parque La Villette, em 1982, coloca no plano teórico da arquitetura as legítimas questões relacionadas com a critica cultural pós-estruturalista. Diria Derrida:

“Estes arquitetos estavam de fato desconstruindo a essência da tradição e criticando tudo que subordinava a arquitetura a outra coisa – o valor da utilidade ou beleza ou habitação, etc. – não para construir algo que fosse inútil, feio ou inabitável, mas para liberar a arquitetura destas finalidades externas, destes objetivos exóticos.[2]

A linha horizontal e o plano horizontal

É muito comum no trabalho dos arquitetos desconstrutivistas a quebra da relação essência-aparência no que se refere ao plano horizontal, ou plano de desempenho.Fig. 1 – Descontrução do plano horizontal

Fig. 2 – Sede da Nunotani. Toquio, 1992. Peter Eisenman. Imagem http://www.geocities.com

A linha do horizonte e o plano do horizonte são talvez os mais importantes elementos estruturantes na concepção do projeto. Desde que nascemos, ao engatinharmos, ao observarmos uma paisagem, ao caminhar tomamos consciência primeiramente do plano horizontal, mesmo que muitas vezes esta apreensão seja ilusória, como no caso das grandes perspectivas.

A verdade é que faz parte de nossa idéia de mundo, e constitui-se em uma necessidade básica espacial. Os arquitetos desconstrutivistas trabalham freqüentemente com a desconstrução deste conceito, que associa a outros pares binários como interior-exterior, essência-aparência etc. Trata-se também de um meio de exercer através da arquitetura uma crítica contundente do mundo atual, da vida atual, vistos pelos pós-estruturalistas sob o crivo da hiperrealidade e do simulacro[3]. O mundo que vivemos é um mundo em que a imagem do real supera o real: as fotografias manipuladas, os factóides, as manipulações da opinião, têm um poder de convencimento que substitui a “busca da verdade” iluminista. A idéia, no caso destes edifícios, é criar uma imagem facilmente recebida como falsa: um “real” que não pode ser real.

A linha vertical e o plano vertical

Semelhante ao plano e linha horizontais, são estruturas básicas de nossa apreensão do mundo, ligadas à própria idéia de construir, de equilíbrio, de gravidade. A vertical e a horizontal são – dentre as manifestações sensoriais de fenômenos naturais – verificações de uma das leis mais diretamente aparentes. A horizontal e a vertical determinam dois ângulos retos, entre a infinidade de ângulos possíveis; o ângulo reto é o angle-type; o ângulo reto é um dos símbolos da perfeição.[4]

Os arquitetos desconstrutivistas trabalham com linhas e planos inclinados, sobretudo em posição aparentemente instável, explorando as estruturas sólidas dos edifícios até o seu limite, e representam a idéia de desafio da natureza, uma idéia iluminista em sua essência, mas deslocada para representar a instabilidade, a incompletude, a imperfeição e o desequilíbrio das próprias leis maquinistas e seu mundo.

O “ponto-de-vista”

Uma das importantes criações do Renascimento, ponto de partida do mundo moderno, é a Perspectiva, instrumento gráfico utilizado pelos pintores para a representação realista do mundo. Os arquitetos passaram a utilizá-la para dominar o espaço criado e orientar sua apreensão pelo usuário. A partir de então, e até o momento heróico do Movimento Moderno, a “prospetiva” renascentista passou a ser um recurso arquitetônico para apreender o espaço a ser criado.Fig. 3 – Desconstrução do ponto-de-vista.

Fig. 4 – (Dir)Igreja do Santo Espírito. Florença, 1434-82. Arq. Filippo Bruneleschi. Imagem http://www.fionline.it  (Esq) Denver Art Museum. Colorado, 2006. Daniel Libeskind.  Imagem http://www.daniel-libeskind.com

A perspectiva como instrumento traz implícita a visão renascentista de mundo, o “olhar para a frente”, em oposição ao “olhar para cima” gótico, o humanismo ( “o homem como centro”). Mas traz também a idéia do ponto-de-vista único; sem ele não há perspectiva. E o ponto-de-vista está ligado à idéia de “sujeito”, idéia esta cuja quebra é fundamental no projeto estruturalista. O “sujeito” cartesiano, livre e independente, não pode conviver com a idéía de estruturas que o antecedam, e muitas vezes governem seus mais simples pensamentos e ações. E a idéia de ponto-de-vista único não pode conviver com a idéia da diferença  de opiniões trabalhada pelos teóricos pós-estruturalistas.

Os eixos ortogonais

A Geometria Analítica, parte do Método cartesiano (1637), procurando localizar os pontos objetivos no espaço através de três eixos coordenados ortogonais entre si, independente de sua operatividade, representa talvez a mais forte referência do projeto iluminista. Nos traz não somente a figura de um instrumento matemático capaz de operar com figuras geométricas através da álgebra, mas também todo o esforço de reduzir o conhecimento à res extensa, àquilo que se pode medir.

Fig. 5 – Sistema de eixos cartesiano.

Descartes, com sua obra, foi um dos pontos de partida do racionalismo moderno. Os eixos ortogonais são uma referência poderosa, e raramente uma planta de edifício não ostenta esta ortogonalidade, muitas vezes explícita e intencional, mas na maioria dos casos um conceito estruturante apenas implícito, talvez o mais forte dos conceitos estruturantes do mundo moderno utilizado nos projetos arquitetônicos.

Talvez por isso mesmo, foi dos primeiros conceitos a ser atacado pelo projeto pós-estruturalista arquitetônico. Antes mesmo, já na primeira década do século XX, os artistas Suprematistas, em oposição os Neoplasticistas, que aceitavam no seu mundo ideal o espaço figurativo regido pelos eixos ortogonais, propunham um espaço pictórico em que os objetos não seriam regidos por eixos coordenados, mas flutuariam no espaço. Os suprematistas são uma forte referência de muitos arquitetos desconstrutivistas como Rem Koolhas e Zaha M. Hadid.Fig. 6 – O Ateneu. New Harmony, Indiana. 1975-9. Arq. Richad Meier. (Imagem Ockman, J. (Ed.) Richard Meier Architect. Nova Iorque: Rizzoli, 1984. P. 194) Neste caso o arquiteto utilizou três sistemas de eixos conjugados na confecção da planta.

Fig. 7 – Conjunto residencial IBA. Vista. Berlim, 1987-94. Arq Zaha M. Hadid. (Imagem http://www.fba.fh-darmstadt.de). A arquiteta compõe a planta livre dos sistemas de eixos, que aparecem apenas incidentalmente.

O triedro mongeano

A Geometria Descritiva, criada por Gaspard Monge, o instrumento de trabalho mais utilizado pelos arquitetos desde sua criação no final do século XVIII, tornou possível a expansão da maquinaria na revolução industrial e contribuiu para o aperfeiçoamento das técnicas de projeto de edifícios, a partir de então completamente previsível, podendo ser visto de todos os ângulos, em vistas e seções, e elaborado com maior perfeição.

Fig. 8 – Triedro de Gaspar Monge

O triedro mongeano, três planos hipotéticos, ortogonais entre si, formam a base do sistema projetivo arquitetônico desde a sua criação. Porém este sistema não é apenas a base utilizada pelos arquitetos para projetar; permanecem representados no projeto, nas paredes e lajes de piso, como uma referência não somente ao sistema utilizado na projetação, mas trazendo à memória a cultura napoleônica, da revolução industrial, do mundo neoclássico, enfim do desenvolvimento final oitocentista do grande projeto moderno maquinista que ajudou a construir.

Fig. 9 – (Dir.) Desenho de Theo van Doesburg. 1924. (Esq.)Casa Schoeder. Utrech. 1924.Arq. Gerrit Rietveld. Imagem Warncke, C.P., L’Idéal en tant qu’Art. De Stijl 1917-1931.  Taschen: Alemanha, 1990. O triedro mongeano representado na arquitetura.Fig. 10 – Wohl Center. Ramat-Gan, Israel. 2005. Arq. Daniel Libeskind. Imagem : http://www.daniel-libeskind.com

O sistema mongeano tem sido substituído por outros métodos, inclusive de computação gráfica, embora ainda seja fartamente utilizado, mas a representação dos três planos ortogonais permanece em nossos edifícios e cidades. Os arquitetos desconstrutivistas trabalham muitas vezes com a desarticulação destes planos criando uma instabilidade perceptiva, que melhor representa nossa instabilidade emocional e funcional, nossa insegurança quanto ao futuro do projeto moderno.

O sólido geométrico puro

Fig. 11 – (Dir.) Edifício Seagram. Nova Iorque 1954. Arq. Mies van der Rohe. Imagem http://www.pbase.com (Esq.) Max Reinhardt Haus. Berlim, 1993. Arq. Peter Einsenman. Imagem Zodiac 10 Rivista Internazionale di Architettura. Milão: Abitare, 1993. P. 123. A desconstrução do sólido geométrico puro.

Uma idéia semelhante à linha e ao plano horizontais ou verticais e que recupera o conceito cartesiano de idéias inatas, conceito este bastante estruturalista na sua essência. O cubo, o cilindro, o prisma, o paralelepípedo, a esfera, figuras ideais e fechadas, têm sido também figuras estruturantes do pensamento e das práticas projetuais arquitetônicas. Em poucos momentos na história da arquitetura os arquitetos pensaram em desobedecê-los. No período heróico do Movimento Moderno, a afirmação do sólido geométrico como princípio projetual torna-se mais claro ainda do que fora anteriormente. Nas primeiras décadas do século XX, Jeanneret (Le Corbusier) e Ozenfant defendiam o uso de figuras puras na pintura.

…cubos, cones, esferas, cilindros ou pirâmides são as grandes formas primárias que a luz revela vantajosamente… estas são formas belas, as mais belas formas.[5]

Veja-se como exemplo a Villa Savoye de Le Corbusier. Rejeitar as figuras puras como princípio projetual é rejeitar o próprio conceito de inatismo de Descartes, na busca da representação um mundo não “racionalista”, mas quem sabe mais humano e racional.

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Aí estão portanto algumas figuras estruturantes, específicas do trabalho arquitetônico, e que correspondem aos pares binários estruturantes de Derrida. O arquiteto trabalha também com aqueles conceitos já citados, que ocupam os filósofos e críticos pós-estruturalistas. Diga-se de passagem, que já trabalhavam com estes conceitos muito antes do termo Desconstrutivismo freqüentar as paginas de revistas e livros de arquitetura. Os pós-modernistas estavam ocupados em uma revisão das práticas características do Movimento Moderno. Mas esta crítica era bastante conceitual, focalizando a questão do ornamento, o anti-historicismo, a dessemantização, o funcionalismo, o anti-regionalismo, que haviam sido as bandeiras das vanguardas modernas do início do século XX.

Com a chamada arquitetura Deconstrutivista, a crítica arquitetônica à velha sociedade industrial dá um salto de qualidade. Voltando ao início, e para usar termos extraídos do mais notório par binário criado por Ferdinand de Saussure, os assim chamados arquitetos pós-modernistas trabalhavam na desconstrução dos significados – a parte conceitual dos signos arquitetônicos, enquanto que os chamados arquitetos pós-estruturalistas, ou desconstrutivistas, trabalham com a parte material dos signos arquitetônicos, com os significantes, os elementos materiais – paredes, lajes, pilares, vigas, portas. É mais uma simplificação, incompleta e até mesmo discutível em certos aspectos, mas que pode ser perdoada por sua simplicidade didática, na medida em que ajuda até um determinado ponto a entender o pós-estruturalismo na arquitetura.

Nos dias atuais, a inocência se perdeu e a esperança de construir um mundo segundo o Projeto Moderno muito se enfraqueceu, como também suas representações. E quando conseguimos ver através da máscara da hiperrealidade com que a mídia reveste suas manifestações, o que vemos é um mundo para o qual as imagens da arquitetura desconstrutivista parecem até realistas.

Fig. 12 – Nova Iorque, 11 de setembro de 2001. Imagens http://www.september11news.com. Fotos JamesNachtwey


[1] VENTURI, R. Complexidade e contradição na arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 1995. Edição original de 1966. VENTURI, R. SCOTT-BROWN, D. e IZENOUR, S. Aprendendo com Las Vegas. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. Edição original de 1972. JENCKS, C. The Language of Post-Modern Architecture. Nova Iorque: Rizzoli, 1977; Londres: Academy Editions, 1977; Late-Modern Architecture, Nova Iorque: Rizzoli, 1980; Londres: Academy, 1980. Signs, Symbols and Architecture, editado com BUNT, R. e BROADBENT, G. Nova Iorque e Londres, 1980. Towards A Symbolic Architecture, Nova Iorque: Rizzoli; Londres: Academy, 1985.

[2] Derrida, J. “In discussion with Christopher Norris” In: Papadakis, A.; COOKE, C. & BENJAMIN, A. (Ed.) Deconstruction. Omnibus Volume. Nova Iorque: Rizzoli, 1989. P.72.

[3] Ver BAUDRLLARD, J. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio d’Água 1991. Ed original Simulacres et Simulation (1981)

[4] OZENFANT, A. e JEANNERET, C-E (Le Corbusier). Aprés le Cubisme. Apud. BANHAM R. Teoria e projeto na primeira era da máquina. São Paulo, Perspectiva, 1979, p. 335.

[5] LE CORBUSIER. Vers une architecture. Apud BANHAM R. Teoria e projeto na primeira era da máquina. São Paulo, Perspectiva, 1979, p. 365.

2 Respostas para “Para entender o Desconstrutivismo

  1. Pedro Oliveira

    Gostei muito da matéria, Silvio… Parece que, enfim, compreendi o conceito desconstrutivista… Muitíssimo obrigado pela “aula”…

  2. Matéria super interessante. Gostei muito.

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