Arquitetura desconstrutivista I

Mark Wigley

Do livro Deconstructivist Architecture. Nova Iorque: The Museum of Modern Art, 1988.
Tradução e edição de Silvio Colin

Arquitetura sempre foi uma instituição cultural central que tem sido avaliada principalmente por promover a ordem e estabilidade. Estas qualidades são geralmente um produto da pureza geométrica da composição formal.

O arquiteto sempre sonhou com a forma pura, com produção de objetos em que qualquer instabilidade ou desordem deveriam ser excluídos. Os edifícios se constroem com formas geométricas simples – cubos, cilindros, esferas, cones. pirâmides, etc. , combinando-os para conseguir conjuntos estáveis (fig.1), seguindo regras de composição que impedem uma entre em conflito com o outra. Não se permite a uma forma distorcer outra, resolvendo todo conflito potencial. As formas contribuem harmoniosamente para formar um todo unificado. Esta estrutura geométrica consoante se converte na estrutura física do prédio: a sua pureza formal se entende como garantia da estabilidade estrutural.

Fig. 1 – A lição de Roma. Le Corbusier. Ilustração de L’Esprit Nouveau, nº 14. 1922.


Tendo produzido esta estrutura básica, o arquiteto, em seguida, elabora um projeto final que preserva sua pureza. Qualquer desvio de ordem estrutural, qualquer impureza, se entende como uma ameaça contra os valores formais representados pela unidade, harmonia e estabilidade, e por isso é isolado, tratado como puro enfeite. A arquitetura é uma disciplina conservadora que produz formas puras, protegendo-as contra a contaminação.

Fig. 2 – Showroom de Produtos Best. Projeto Notch. Sacramento, Califórnia, 1977. Arquitetos Grupo SITE.
Fig. 3. Spliting: Four Corners. Gordon Matta Clark. 1974. Imagem http://www.artnet.com

Os projetos dessa exposição [1] representa uma sensibilidade diferente, em que o sonho da forma pura foi alterado. A forma foi contaminada. O sonho tornou-se um espécie de pesadelo. É esta capacidade de alterar as nossas idéias sobre a forma que faz com que esses projetos sejam desconstrutivos. Eles não derivam da modalidade filosófica contemporâneo chamado Desconstrução.

 

Fig. 4 –  Centro Ushimado Internacional do Festival de Arte de Ushimado. Japão, 1984. Hiromi Fujii.
Fig. 5 – Castelos de Romeu e Julieta. Bienal de Veneza.  1985. Peter Eisenman


Não são uma aplicação da teoria desconstrutiva. Em vez disso, emergem da tradição arquitetônica e exibem certas qualidades desconstrutivas. A desconstrução em si mesma, porém, é freqüentemente confundida com a desmontagem das construções. Por conseguinte, todo o projeto arquitetônico provocativo que pareça desfazer a estrutura, seja pela simples ruptura de um objeto (Figs. 2, 3) ou da complexa incorporação de um objeto em uma colagem (Figs. 4, 5) – tem sido chamado de desconstrução. Estas estratégias têm produzido alguns dos mais formidáveis projetos nos últimos anos, mas são apenas simulações da obra desconstrutiva em outras disciplinas, já que não exploram a condição única do objeto arquitetônico. A desconstrução não é a destruição ou dissimulação. Apesar de certas falhas estruturais evidenciadas nas estruturas aparentemente estáveis, estas falhas não levam ao colapso da estrutura. Pelo contrário, a desconstrução recebe toda a sua força a partir do seu desafio aos próprios valores da harmonia, unidade, e estabilidade, propondo em seu lugar uma outra visão da estrutura: nela as falhas são vistas como falhas inerentes à estrutura. Não podem ser removidas sem destruí-la. Elas são, na verdade, estruturais.

 

Fig. 6 – Supremus #50. Malevich. 1950. Imagem DRUTT, 2003.

 

Um arquiteto desconstrutivista não é aquele que desmonta edifícios, mas aquele que localiza os dilemas que lhes são inerentes. O arquiteto desconstrutivista deixa de lado a tradição das formas “puras” arquitectónicas e identifica os sintomas de uma impureza reprimida. A impureza se manifesta através de uma mistura de suave convencimento e violenta tortura: a forma é submetida a um interrogatório.

Para isto, cada projeto utiliza estratégias formais desenvolvidas pela vanguarda russa do início do século XX. O Construtivismo Russo foi um marco fundamental na tradição arquitetônica, que foi tão completamente retorcida, que provocou uma rachadura através da qual certas possibilidades arquitetônicas inquietantes se tornaram visíveis pela primeira vez. O pensamento tradicional sobre a natureza do objeto arquitetônico foi colocada em dúvida. Mas essa possibilidade não foi reconhecida. A ferida na tradição não tardou a fechar, deixando uma cicatriz discreta. Estes projetos abriram esta cicatriz.

 

Fig. 7 – Relevo de canto. V. Tatlin. 1915. Imagem <www.the-undertow.net>


A Vanguarda russa representou um desafio à tradição, quebrando as regras tradicionais de composição, em que a relação hierárquica e equilibrada entre as formas criam um todo unificado. As formas puras são usadas para produzir composições geométricas “impuras” e torcidas.

Tanto os suprematistas, liderados por Malevich, como os construtores de obras tridimensionais, especialmente Tatlin, colocavam formas simples em conflito para produzir uma geometria volátil e inquieta (Figs. 6, 7). Não havia um único eixo ou hierarquia de formas, mas um ninho de linhas e formas em competição e conflito.

Nos anos que antecederam a revolução de 1917, esta geometria tornou-se cada vez mais irregular. Nos anos que se seguiram, a vanguarda foi rechaçando progressivamente as artes tradicionais por considerá-las uma fuga da realidade social, mas, não obstante, se dedicaram à arquitetura, precisamente porque ser esta inerentemente funcional e não poder ser separada da sociedade.
Entendiam a arquitetura como uma arte, mas com base suficiente na função para poder ser utilizada na promoção do objetivos revolucionários, e desde que a arquitetura é tão entrelaçada com a sociedade, a revolução social requeria uma revolução arquitetônica.

Começou-se  a pesquisar sobre a possível utilização da arte pré-revolucionaria como base para as estruturas radicais. As formas, que tinham ressuscitado nos desenhos iniciais, transformaram-se em relevos e geometrias instáveis que se multiplicaram para criar um novo tipo de espaço interior (Fig. 8), parecendo estar prestes a se transformar em arquitetura.

Fig. 8. Café Pittoresque. Aplique de Parede. Tatlin, 1917. Imagem JOHNSON, WIGLEY,  1988, p. 12.

 

O monumento de Tatlin (Fig. 9), no qual as formas geométricas puras estão presas em uma estrutura retorcida, parecia anunciar uma revolução na arquitetura. Na verdade, por um período de tempo, esboçaram-se uma série de projetos avançados. Na estação de rádio Rodchenko, por exemplo (Fig. 10), as formas puras atravessam o quadro estrutural, modificando-o e modificando-se. No projeto da habitação comunal de Krinskii (Fig. 11), o quadro foi completamente desintegrado, as formas já não tem relações estruturais, e parecem produto de uma explosão.


Fig. 9 – Monumento da 3ª Internacional. Vladmir Tatlin, 1917. Imagem <purplemotes.net>

Fig. 10 – Desenho para uma estação de rádio. Aleksandr Rodchenko. 1920
Fig. 11 – Desenho para Comuna. Vladmir Krinskii. 1920.
Mas todas essas estruturas radicais nunca foram construídas. Houve uma grande mudança ideológica. Na medida em que os construtivistas se comprometiam mais com a arquitetura, a instabilidade de sua obras pré-revolucionária iam desaparecendo. O conflito de formas que definia os primeiros trabalhos, foi gradualmente se resolvendo. As montagens instáveis de formas em conflito se tornaram montagens maquinistas  de formas em harmoniosa cooperação para alcançar objetivos específicos. No Palácio do Trabalho dos irmãos Vesnin, obra canônica do construtivismo, que foi elogiado como inaugurador de uma nova era no domínio da arquitectura, a geometria que identificava as primeiras obras somente está presente nos cabos superiores (Fig. 12). E mesmo aí ele se suavisa ainda mais, ao passar de um esboço preliminar para o projeto final (Fig. 13), no qual a perigosa fantasia se converteu em segura realidade. No desenho as linhas dos cabos se entrechocam e volumes básicos são distorcidos. Mas, no projeto final, os volumes foram purificados – fizeram-se suaves, clássicos, e todos os cabos convergem ao longo de um único movimento, hierárquico e vertical.
Fig. 12 – Desenho preliminar para o palácio dos Trabalhadores. Irmão Vesnin. 1922.
Fig. 13 – Projeto final para o Palácio dos Trabalhadores. 1923. Irmão Vesnin.

Toda a tensão do primeiro esboço é resolvido em um único eixo: a geometria sem direção se alinha. O projeto contém apenas vestígios de estudos pré-revolucionários: aquela primeira obra aqui tornou-se um mero ornamento aplicado sobre o telhado de uma composição clássica, de formas puras.  A estrutura inferior permanece inalterada.

A instabilidade tinha sido marginalizada. Na verdade, só teve a oportunidade de desenvolver-se plenamente nas formas de arte tradicionalmente considerada marginais: cenografias teatrais, decorações de rua, fontes, fotomontagens e design de vestuário (figs. 14-18) – as artes não tinham restrições estruturais e funcionais.

Fig. 14 – Desenho de um quiosque. A. Rodchenko. 1919

A Vanguarda Russa não teve puramente obstáculos políticos e tecnológicos para construir seus estudos iniciais. Nem deixou o espírito de seu primeiro trabalho. Porém, a instabilidade dos trabalhos pré-revolucionários nunca tinha sido proposta como uma possibilidade estrutural. Aquela obra não estava tão preocupada com a desestabilização da estrutura. Pelo contrário, preocupava-se com a pureza fundamental da estrutura. Sua geometria irregular é entendida como uma relação dinâmica entre as formas flutuando no espaço, mais do que de uma condição instável estrutural inerentes às formas: a pureza das formas individuais nunca foi questionada, nunca tinha manipulado a sua estrutura interna.

Fig. 15 – Maquete para cenografia. Museu da Cultura. Velimir Khlenikov. 1923

Fig. 16 – Maquete para cenografia da obra de A. Ostrovsky. V. Tatlin. 1935.

Mas, em sua tentativa de converter os primeiros experimentos formais em estruturas arquitetônicas retorcidas, Tatlin, Rodchenko e Krinskíi, transformaram o dinamismo em estabilidade. Seus desenhos são, portanto, uma aberração, uma possibilidade extrema para além do espírito das primeiras obras.

Fig. 17 – Cenografia Teatral Construtiva. Iakov Chernikov. 1931

A arquitetura construtivista mais estável dos Vesnin, paradoxalmente, manteve esse espírito, a preocupação com a pureza estrutural, justamente protegendo a forma de ameaça de instabilidade. Como conseqüência, não foi capaz de alterar a condição tradicional do objeto arquitectônico.

A arquitetura se manteve em seu papel tradicional. Nesse sentido, o projeto vanguardista radical fracassou no domínio da arquitectura. Há estratégias formais possíveis dentro da arquitetura que transformam a sua condição fundamental; tais transformações ocorreram em outras artes, mas não na arquitetura. Houve apenas uma mudança de estilo, e até mesmo  o novo estilo logo sucumbiu ao movimento moderno, que se desenvolvia em paralelo, na mesma época. A Vanguarda russa foi corrompida pela pureza do movimento moderno.

O movimento moderno tentou uma purificação da arquitectura ao despojá-la de toda a ornamentação da tradição clássica, revelando a pureza da a estrutura funcional subjacente. A pureza formal  associava-se com a eficiência funcional. Mas o movimento moderno estava obcecado pela funcionalidade estética elegante, e não pela dinâmica complexa da função em si mesma. Ao invés de utilizar os requisitos específicos do programa funcional para gerar a ordem básica dos seus projetos, manipulava a pele das formas geométricas puras para representar o conceito geral de função. Ao utilizar uma estética maquinista produzia um estilo funcionalista. Como os clássicos, articulava a superfície de uma forma de tal maneira que marcava a sua pureza. Restaurava a mesma tradição da qual tentava escapar, substituindo a envolvente clássica com uma moderna, mas sem transformar a condição fundamental do objeto arquitetônico. A arquitetura permanecia como agente estabilizador.

(Continua)


Notas

[1] Exposição Deconstructivist Architecture. Museum of Modern Art, Nova Iorque, 1988. Este texto foi escrito como apresentação da exposição e foi publicado em seu catálogo.
Bibliografia
DRUTT, Matthew. Kazimir Malevich-Suprematism. Nova Iorque: Guggenheim Museum, 2003.
JOHNSON, Philip e WIGLEY, Mark. Deconstructivist Architecture. Nova Iorque: The Museum of Modern Art, 1988.


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